Brasil apreende só 3% da droga que entra no país via Rota do Solimões

FOTO: William Cardoso/Metrópoles

Fronteira desguarnecida faz com que tráfico percorra rios da Amazônia com baixo risco, escoando grandes volumes de droga pelo Rio Solimões

Estimativas de especialistas em segurança pública dão conta de que apenas 2% a 3% da cocaína produzida nos países vizinhos do Peru e da Colômbia e enviada para o território nacional seja apreendida na Rota do Solimões, na Amazônia, que hoje tem a hegemonia do Comando Vermelho (CV).

O volume é estimado a partir de imagens de satélites das áreas de plantio de coca em países vizinhos, que contam até com variedades adaptadas ao úmido clima amazônico e não são mais produzidas exclusivamente nas encostas dos Andes.

Pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), Cesar Mello diz que é sempre difícil mensurar as quantidades de droga produzida, mas explica a maneira como se chega a essas proporções. “Usando qualquer metodologia de cálculo, percebe-se que a produção gira em torno de milhares de toneladas, enquanto as apreensões ficam em menos de uma centena”, diz.

a prática, a fronteira do Brasil com Peru e Colômbia só existe nos mapas. A vida real mostra que não há qualquer tipo de controle no acesso aos rios da região do Alto Solimões, uma área de 96 mil quilômetros quadrados, equivalente ao território de Portugal, e com intensa atuação do crime organizado.

Entre a cidade brasileira de Tabatinga e a colombiana Letícia, por exemplo, nenhum posto das Forças Armadas, aduana ou qualquer órgão de fiscalização de práticas criminosas. Transita-se livremente entre os dois países. A tríplice fronteira é formada ainda pela ilha peruana de Santa Rosa, acessível com qualquer canoa, sem abordagem de autoridades de segurança.

Segundo as autoridades, a cocaína é transportada muitas vezes nessas pequenas embarcações, que promovem um vaivém frenético pelo Solimões, rios e igarapés da região.

Ao longo do Rio Javari, um curso d’água que serpenteia por mais de 1.000 km de extensão, na fronteira com o Peru, qualquer um pode cruzar de uma margem a outra sem ser incomodado e o patrulhamento é exercido na prática pela Polícia Militar do Amazonas, com 156 integrantes no batalhão de Tabatinga.

As Forças Armadas contariam com um efetivo de cerca de mil homens na região da tríplice fronteira, que ficariam restritos a atividades que não incluem patrulhamento e abordagem de criminosos. Como disse um policial ouvido pela reportagem, só atuam se “cair no colo”.

Como funciona

Segundo uma autoridade ouvida pela reportagem, anteriormente os traficantes pagavam a droga somente após o recebimento. Muitos ficavam devendo aos fornecedores e, quando a dívida se tornava impagável, rumavam até os países vizinhos para assassinar o credor, quem tinha fornecido o entorpecente.

Inadimplência e assassinato fizeram os fornecedores mudarem a estratégia. Ou seja, os traficantes pagam antecipadamente e só depois a droga é embarcada para o Brasil.

omo ficam com medo de perder a cocaína pela qual já pagaram, os traficantes contratam a segurança para descer o Solimões. É o chamado “imposto” (equivalente ao pedágio) para cruzar determinado trecho do rio. Por exemplo, de Tabatinga a Coari, um grupo escolta a carga. De Coari a Manaus, outro. E assim segue o barco, muitas vezes até Belém e Macapá, de onde a cocaína segue para a Europa.

Traficantes de uma mesma facção ou integrantes de grupos independentes passaram também a formar consórcios da droga, utilizando as mesmas embarcações com suas cargas devidamente separadas, identificadas por símbolos. É uma forma de baratear os custos e dividir os riscos.

As drogas não são os únicos produtos transportados por traficantes, que estão embrenhados em todo tipo de crime, como pesca predatória, extração de madeira e, principalmente, ouro de garimpo ilegal.

Desafios

A complexidade de se fazer policiamento na região do Alto Solimões tem, por óbvio, proporções amazônicas. São 1.430 km de fronteira somente com o Peru, mais 1.644 km com a Colômbia. Como comparação, a fronteira dos Estados Unidos com o México tem 3.145 km. “[Nos EUA] Fronteira seca, policiada, com muro em quase toda ela. E assim mesmo, lá adentra o entorpecente”, diz major da PM Diego Magalhães, subsecretário de Operações.

Magalhães cita situações curiosas na região da fronteira entre Brasil e Colômbia, como casas que têm a frente virada para um país e o quintal em outro. “Se o bandido entrar por uma casa e pular o muro já está em outro país”, diz.

A situação é tão complexa que o próprio deslocamento da droga obedece ao regime de cheias e vazantes dos rios. Quando o nível está mais elevado, traficantes costumam usar principalmente as embarcações para escoar a droga, se aproveitando de atalhos (furos). Na seca, muitos ainda se arriscam pelas rotas fluviais, mas é o transporte aéreo quem cumpre o papel de levar a cocaína mais adiante.


“Na seca, eles estocam o entorpecente. Aí vem aquela situação da demanda. Precisou de entorpecente para a capital ou para mandar para fora, tem o aéreo”, diz o major da PM, Diego Magalhães. O PCC foi a facção que, diante da hegemonia do CV nos rios, se fortaleceu com o transporte em pequenos aviões e helicópteros, voando abaixo dos radares. Relatório de inteligência da PM aponta que são mais de 200 pistas clandestinas no estado, principalmente nas bordas sul, norte e leste.

O CV é o grupo hegemônico, mas não exerce o monopólio do crime na região. A facção do Rio de Janeiro assumiu a preponderância no Amazonas ao acabar com seus antigos aliados da Família do Norte (FDN), impedindo também a ascensão do PCC, que é mais forte no estado vizinho de Roraima.

A facção nascida em São Paulo tentou cooptar o também extinto grupo chamado de “Crias”, na fronteira, mas predomina hoje em apenas quatro municípios amazonenses, sendo o principal deles Coari, no meio do caminho entre Tabatinga e Manaus. Para isso, contou com a ajuda dos “piratas”, quadrilhas formadas em muitos casos por PMs, que assaltam embarcações e revendem a droga roubada.

De toda forma, é fácil notar a preponderância do CV na região de fronteira, onde é comum encontrar pichações por todo lado com as inscrições da facção do RJ. Isso até mesmo na colombiana Letícia, onde é “tudo 2” — residentes de áreas sob atuação dos criminosos fazem o sinal com os dedos indicador e médio levantados, um dos símbolos da organização criada no RJ.

Socorro

Diante de uma fronteira tão permeável, o secretário da Segurança Pública do Amazonas, Marcus Vinícius Oliveira de Almeida, afirmou durante o Encontro Anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) que tem mantido contato com o governo federal para que as Forças Armadas mudem a forma de atuação na fronteira.

“Não é o estado do Amazonas que precisa, mas a nação brasileira, de que haja uma ação mais incisiva das forças federais, das Forças Armadas mesmo no combate ao tráfico de drogas”, disse. “Não é uma fala para fazer uma crítica ao governo federal. É para alertar das possibilidades que a nação pode ter e ver vieses de atuação para combater algo tão premente. Todos estão vendo o que está acontecendo aqui”, afirmou.

O secretário nasceu justamente na fronteira do Brasil com o Peru, às margens do Javari, na cidade de Atalaia do Norte, onde o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram assassinados em 2022 por criminosos da região, ligados à pesca ilegal, entre outros.

“A gente se sente como se o Brasil estivesse de costas para a gente. A gente precisa de apoio, a gente precisa que tenha mais efetivo da PF, são extremamente importantes. A gente precisa que o Brasil olhe para a gente como brasileiros. O fardo é muito pesado para a gente carregar sozinhos”, disse Almeida.

O governo do Amazonas tem montado bases nos rios que cruzam o Amazonas, mas são bastante custosas para o estado. Segundo o secretário Almeida, o governo federal manda o equivalente a R$ 1,3 milhão por mês em diárias, mas cabe ao governo estadual outros R$ 7 milhões.

O impacto do tráfico no estado é gigantesco. O secretário diz que 80% dos homicídios em Manaus têm relação com o tráfico de drogas.

Apesar dos problemas, Almeida afirma que a implementação de bases de fiscalização, entre outras medidas, fizeram aumentar de o volume de apreensões de 9 toneladas, em 2018, para 43 toneladas, em 2024. Também cita a redução da taxa de homicídios, que deve chegar a 17 por 100 mil habitantes ao final do ano, quando já foi de 34 por 100 mil. Na tentativa de impedir o crescimento de facções, tem isolado lideranças do restante da massa carcerária.

O Amazonas tem investido em lanchas blindadas e instalado embarcações chamadas de bases “Arpão”, em pontos estratégicos dos rios.

Integração

Em março de 2023, o governo federal lançou, por meio do Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Programa Amas (Amazônia, Segurança e Soberania), com a previsão de investir R$ 2 bilhões na região.

No contexto do Amas, foi montado o Centro de Cooperação Internacional da Polícia Federal (CCPI) em Manaus, recém-inaugurado e ainda em fase de estruturação.

No local, representantes de nove estados brasileiros e de países fronteiriços podem atuar de forma conjunta para reunir informações e definir estratégias de combates a crimes os mais diversos. O órgão é comandado por Humberto Freire.

Ministério da Defesa foi procurado, mas não se manifestou até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestação.

POR METROPOLES

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